Nota da Associação Brasileira de Antropologia (ABA)

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Repúdio à Orientação Normativa nº. 3, de 1o. de agosto de 2016,
do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão,
contra Programa de Promoção da Igualdade Racial

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Assim como há remédios que ameaçam matar o doente, há normas que restringem direitos quando não expressam, de forma implícita, interesses reacionários. Esse é o caso da Orientação Normativa nº. 3, de 1o. de agosto de 2016, emitida pelo Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. A qual se propõe estabelecer diretrizes para a aferição da veracidade da autodeclaração prestada por candidatos negros para fins do disposto na Lei nº. 12.990, de 9 de junho de 2014, que dá forma ao Programa de Promoção da Igualdade Racial. Nessa lei está prevista a observância de cotas para negros e pardos em concursos públicos federais.

A diretoria da ABA (Gestão 2015/2016) atenta aos direitos étnico-raciais, vem a público manifestar seu repúdio a tal Orientação, que apelando para um discurso cientificista, anula os efeitos desejados na orquestração das políticas contra o pré-conceito e a favor da promoção da igualdade racial no Brasil.

Em primeiro lugar, sua redação revela um traço marcante da relação do Estado brasileiro para com a sociedade: a suspeição sistemática sobre índoles e legitimidade dos interesses dos cidadãos, fundamentando ações persecutórias e repressivas, e, inclusive, a ameaça de uma eventual acusação por falsidade ideológica. O que fica sugerido quando se afirma, no parágrafo 3º do inciso IV do artigo 2º: “Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso sem prejuízo de outras sanções cabíveis”.

Desta maneira, a orientação estabelece meios de contornar o princípio da autodeclaração disposto na lei no. 12.288/10, pois designa que os editais devem especificar métodos de verificação da veracidade da auto-proclamação, “com a indicação de comissão designada para tal fim, com competência deliberativa”. Em outras palavras, a autodeclaração identitária, atribuição que compete ao próprio indivíduo no encontro consigo mesmo, promovendo a superação do preconceito histórico, fica sujeita à confirmação de agentes externos.

Em segundo lugar, a normativa se supera quando estabelece que essas “formas e critérios de verificação da veracidade da autodeclaração deverão considerar, tão somente, os aspectos fenotípicos do candidato”, a serem verificados obrigatoriamente com a presença do concorrente diante da tal comissão deliberativa, que já vem sendo denominada jocosamente, em diferentes âmbitos, por “tribunal racial”.

O problema é que tal previsão presume um domínio genérico sobre a capacidade de se posicionar sobre essências identitárias, que não podem ser “avaliadas” externamente, mas que correspondem à ordem das moralidades construídas com base em histórias de vidas individuais ou de grupos específicos que só podem ser da competência daqueles que as experimentam, a começar pelos sujeitos que se auto-declaram.

Em planos subjacentes, a Orientação Normativa no. 3, faz emergir (ou reproduz) ideais, ainda recalcitrantes, de busca, no “mundo das relações sociais”, de formas ordenadas, objetivas e invariáveis que habitam (e hoje sabemos que apenas parcialmente) o reino da natureza.

Entretanto, a compreensão das relações sociais em uma esfera autônoma e para além das dimensões biológicas e ambientais dos seres humanos, viabilizou não apenas avanços monumentais em campos de saber como Antropologia, Sociologia, Psicologia e afins, como também revelou um aspecto crucial na odisséia de interpretação do mundo: todo saber envolve relações de poder. E a vida e história dos descendentes dos africanos escravizados trazidos para o Brasil é uma expressão na longue dourée dos vícios e virtudes dessa relação inexorável entre saber e poder.

O negro no Brasil (e no mundo) foi produzido “cientificamente” (por intermédio de especialistas “armados” com paquímetros, esfigmomanômetros, balanças, entre outros instrumentos de manipulação stricto e lato sensu) como elemento nocivo ou desajustado aos padrões civilizatórios do Ocidente. Este mesmo negro, em particular o negro brasileiro, também foi produzido como elemento exótico e pitoresco – suspenso nas teias de superstições irracionais. Após a Segunda Guerra Mundial e as evidentes consequências do Nazismo, ganhou impulso uma intensa crítica no âmbito da ciência quanto aos pressupostos que embasam o uso do conceito de raça para descrever a diversidade biológica das populações humanas. É nesse contexto histórico que, finalmente, o negro é compreendido à luz dos efeitos perversos de imagens e representações a ele imputadas. E que, no Brasil, tiveram papel decisivo nas condições socioeconômicas de parcela significativa da população brasileira ensejando, assim, açõesdo Estado traduzidas em medidas compensatórias na virada do século XX.

Nessa linha, é preciso deixar claro que, quando se trata de seres humanos, “raça” é uma categoria desprovida de qualquer sentido. Ela pertence ao reino da política, e sua persistência só poderia ser justificada como elemento de autovalorização e busca por direitos, ganhando, assim, uma dimensão sócio-histórica, para além de qualquer determinação física/biológica.

Portanto, o que a Orientação Normativa faz é promover situações nas quais a definição de uma identidade étnica se desenvolva na escala macroscópica das relações de constrangimento, inclusive com possíveis implicações de natureza penal. E isso em uma sociedade em que o direito, em lugar de promover a igualdade e garantir a liberdade, toma um viés repressivo e punitivo nada isento da discriminação por cor de pele, como evidencia o sistema prisional.

Estabelecer a definição identitária de sujeitos sociais com base nas impressões ou “achismos” por parte de autoridades ocasionais constitui flagrante retrocesso e postura anti-científica, em suas componentes naturais e sociais, dando espaço para a reedição de teses e práticas reificadoras da existência das raças a partir de um viés etnocêntrico e, como se vê, cientificamente mal informado.

Exemplo disso é a recente iniciativa, do Instituto Federal de Educação (IFPA), em Belém (Pará), de incluir, em processo seletivo, critérios para definição de “padrões avaliativos” de “descrição do negro”. Tais padrões estavam contidos em um quadro de variáveis antropomórficas que pareciam querer acordar o médico e criminalista italiano Cesare Lombroso do sono dos mortos, mas que, graças às intensas críticas suscitadas e aos posicionamentos de movimentos sociais sediados em Belém, foi suprimida.

Os “Padrões Avaliativos” da lista do IFPA se pautaram em nove critérios, incluindo “fenótipo” relativos à pele, nariz, boca/dentes, osso maxilar, crânio, face, cabelo, barba e arco zigomático, com respectivas indicações de gradações. Esses critérios se baseiam em abordagens classificatórias que remetem a um período da História do Pensamento Científico, sobretudo entre o final do século XIX e o início do XX, quando na área da Antropologia Física e de diversas ciências médicas se considerava que “raça” era um constructo cientificamente válido para descrever e caracterizar a biologia da espécie humana.

Diferentemente, na atualidade se reconhece que a variabilidade morfológica humana não se apresenta distintivamente compartimentalizada segundo grupos raciais. Há abundantes evidências de sobreposição do que foi concebido como caracterizando grupos raciais supostamente distintos (por exemplo, uma pessoa preta mas sem prognatismo saliente e com pouca “dolicocefalia”).

Não menos importante, cabe indicar que vários dos atributos indicados nos “Padrões Avaliativos”, como “dentes muito brancos” e “mucosas roxas”, podem apresentar intensa influências das condições socioambientais às quais os indivíduos se expõem ao longo de suas vidas (alimentação, acesso à atenção odontológica, entre outras), como há um século atrás demonstrou o influente antropólogo Franz Boas no clássico estudo intitulado Mudanças no formato corporal em descendentes de imigrantes.

É nessa chave reflexiva, que se vincula à longa história de crítica da Antropologia aos essencialismos raciais, que a ABA manifesta sua preocupação quanto ao uso de procedimentos de utilização das características físicas que embasam iniciativas como aquela dos “Padrões Avaliativos para Descrição do Negro” e, fundamentalmente, a legitimação dada à adoção de tais critérios por parte da Orientação Normativa nº. 3, de 1o. de agosto de 2016, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.

Entendemos, portanto, que a questão da cor ou raça se imbrica profundamente com construções individuais e coletivas de caráter identitário que vão muito além das características físicas e, portanto, da avaliação externa que qualquer comissão possa vir a aferir. No cenário atual de enfrentamento das desigualdades raciais no Brasil, nossa posição é que a auto-declaração, livre de suspeições e ameaças, deve ser o critério principal e norteador.

Brasília, 11 de setembro de 2016.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA
GESTÃO 2015-2016.

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