Denúncia do acordo entre VALE, Instituições de Justiça e governo de Minas Gerais

Comunidades quilombolas da bacia do rio Paraopeba (Minas Gerais) denunciam inúmeras violações de direitos repetidamente praticadas pela Vale, instituições de justiça, estado de Minas Gerais e Assessorias Técnicas em um processo que finge reparar seus direitos violados em decorrência do rompimento da barragem B-I, de propriedade da Vale S/A, em Brumadinho em 25 de janeiro de 2019.

DENÚNCIA AO ACORDO ENTRE VALE, INSTITUIÇÕES DE JUSTIÇA E

GOVERNO DO ESTADO DE MINAS GERAIS

Nós, das comunidades quilombolas Beira Córrego, Retiro dos Moreiras e Quilombo da Pontinha, através desta carta, denunciamos as inúmeras violações de direitos repetidamente praticadas pela Vale, instituições de justiça, estado de Minas Gerais e Assessorias Técnicas contra nós em um processo que finge reparar os nossos direitos violados em decorrência do rompimento da barragem de mina da Vale S/A em Brumadinho em 25 de janeiro de 2019.

Nossas comunidades quilombolas são históricas e estão entre os povos e comunidades tradicionais da bacia do Rio Paraopeba que foram diretamente atingidas pelo desastre-crime da Vale S/A. Pontinha tem cerca de 3000 moradores e fica na zona rural do município de Paraopeba (MG). Beira Córrego e Retiro dos Moreiras ficam na zona rural do município de Fortuna de Minas (MG) e têm cerca de 450 moradores. Historicamente, nossas comunidades sofreram com sucessivos apossamentos irregulares, grilagens e usos indevidos dos nossos territórios. No caso de Pontinha, inclusive com a ação de empresas multinacionais monocultoras de eucalipto. Apesar disso, nossos quilombos segues resistindo e recriando nossas culturas e as formas como vivemos, que agora estão muito ameaçados porque a Vale matou nosso rio. Para nós, o rio Paraopeba era o lugar principal onde pescávamos, onde nossos animais bebiam água e se banhavam, onde íamos nadar e aproveitar os dias de folga. Era nadando ou atravessando a canoa pelo rio que chegávamos a outra margem para trabalhar, onde nossas ancestrais lavavam roupa. Era também nas margens do rio Paraopeba que plantávamos muitas de nossas roças e catávamos raízes e plantas medicinais. O rio era também fonte de renda para nós: ele nos garantia água para nossas produções agrícolas, era atrativo para turistas que consumiam na comunidade e proporcionava a atividade da pesca, por sua vez, garantia a renda com a cata do minhocuçu, que é uma atividade tradicional de sustento para muitas famílias quilombolas.

Desde o rompimento da Barragem da Mina do Córrego de Feijão, o nosso rio Paraopeba está contaminado por rejeitos de minério da Vale e tornou-se uma ameaça para nossa saúde. Nossas comunidades estão impedidas de se aproximar do rio e realizar todas essas atividades que nossos pais, avós, bisavós desde sempre praticaram e, por isso, são chamadas de tradicionais. Estamos privados do rio Paraopeba que é uma das nossas principais referências ecológicas, produtivas e geradoras de bem viver nos nossos territórios. Além de tudo, nós, quilombolas, estamos sofrendo perdas econômicas e, consequentemente, enfrentando maiores dificuldades para mantermos nossas famílias no dia a dia. 

A Vale S/A, no entanto, recusou-se a reconhecer os danos causados à nossa comunidade, assim como a várias outras da região. Negou nossos auxílios emergenciais, que serviriam para nos ajudar a suportar alguns dos danos em um tempo hábil, impedindo que nossa situação de desamparo e perda de fontes de renda se agravasse. Mas dois anos já se passaram e nada de auxílio, isso gerou ainda mais violações sobre nossas comunidades e territórios. A Vale violou a Constituição Federal e várias legislações específicas ao questionar a legitimidade de reparações emergenciais necessárias a nós povos e comunidades tradicionais da bacia do Rio Paraopeba. Diante de tantas violações, Ministério Público e Defensoria Pública (Instituições de Justiça) não foram capazes de garantir agilidade no atendimento às reivindicações das vítimas do crime da Vale S/A. 

Como se não bastasse a demora com essas providências, no dia 04 de fevereiro, após meses de negociação sem a nossa participação ou de qualquer outras pessoas atingidas, a Vale S/A, Instituições de Justiça e governo do Estado de Minas Gerais celebraram um acordo judicial que limitou os gastos financeiros da empresa com a reparação de danos que sofremos (ACORDO JUDICIAL PARA REPARAÇÃO INTEGRAL RELATIVA AO ROMPIMENTO DAS BARRAGENS B-I, B-IV E B-IVA / CÓRREGO DO FEIJÃO Processo de Mediação SEI n. 0122201-59.2020.8.13.0000 TJMG / CEJUSC 2o GRAU). Isso é muito grave porque os danos sequer foram tecnicamente identificados, caracterizados e valorados. Esse acordo sem a participação das pessoas atingidas até menciona a necessidade de uma “consulta livre, prévia e informada” às comunidades para a condução da elaboração de projetos, mas não menciona nosso direito garantido pela Convenção 169 da OIT que obriga que essa consulta seja séria. O texto do documento não garante que as comunidades atingidas sejam consultadas para definir os programas e projetos que afetarão as suas vidas. Pelo contrário, o texto expressa a possibilidade de que o direito à consulta seja atendido por meio de uma simples indicação, pelas comunidades, de uma ordem de prioridades para a execução de projetos e programas que foram pré-determinados, sem diálogo com a sociedade, e que estão descritos de maneira genérica, simplória e obscura.

O texto do acordo é, portanto dúbio, vago e gera muitas inseguranças para nossa comunidade, em especial por trazer dois elementos extremamente ameaçadores a todos os territórios de povos e comunidades tradicionais. O primeiro deles é a regularização fundiária de imóveis rurais na calha do Rio Paraopeba, que pode acabar por legitimar diversas grilagens de terras feitas sobre os nossos territórios, pois títulos individuais poderão ser entregues para fazendeiros que são grileiros. O outro fato é que a própria Vale será a responsável por conduzir uma suposta recuperação ambiental do rio Paraopeba, uma violência sem tamanho. Para nós o rio é um ambiente sagrado e a sua violação deveria ser reparada de maneira a garantir que empresas que lidam com a natureza de maneira exploratória e tratam a terra como mercadoria não tivessem o direito de, além de tudo, definir o modo como essa recuperação deverá acontecer. Para a comunidade de Pontinha as inseguranças geradas pelo acordo são ainda mais graves porque o quilombo é citado como objeto de “realização de um inventário” (Anexo I.3 do documento do acordo) sem qualquer informação a respeito dos objetivos e consequências de um procedimento como este.

Para piorar essa situação, os prazos estabelecidos no acordo são muito curtos e estão sendo contados desde a sua homologação em 04 de fevereiro de 2021 sem considerar o contexto de pandemia em que estamos vivendo, que nos obriga a nos afastarmos. No quilombo, internet e sinal de telefone são uma raridade. Ao mesmo tempo, mesmo após meses de seguidas reuniões com a Vale para negociar os direitos das populações atingidas, quando perguntamos às Instituições de Justiça como se dará a execução dos programas e projetos previstos no acordo, elas não sabem nos responder. As Instituições de Justiça, que deveriam representar os interesses dos povos, comunidades e populações atingidas, demonstram assim que

celebraram um acordo sobre o qual não dominam conhecimento técnico adequado e manifestam desconhecimento sobre detalhes que incidem diretamente sobre a segurança territorial de nós povos e comunidades tradicionais da bacia do Rio Paraopeba.

Por tudo isso, exigimos:

1) o imediato fornecimento das condições necessárias para nossa participação efetiva e informada nesse processo. Começando pela garantia de acesso das comunidades ao auxílio financeiro emergencial, que nos tem sido negado desde o ano de 2019, a fim de nos propiciar condições mínimas de dignidade para aguardar o fim do processo de Reparação Integral. Fundamental também é a garantia de acesso à internet de qualidade nas várias áreas dos nossos territórios a fim de garantir que todas as famílias consigam acessar as reuniões online, considerando que a pandemia de COVID-19 tem nos obrigado a esta forma de participação, que já não é a mais adequada.

2) a imediata interrupção dos prazos estabelecidos no acordo do governo de Minas com a mineradora Vale S/A para que seja realizada uma verdadeira consulta prévia, livre, informada e de boa fé, conforme nos é garantido pela Convenção 169 da OIT e tornada lei ordinária brasileira através do Decreto No 5.051, de 19 de abril de 2004;

3) os devidos esclarecimentos sobre a execução da “Realização de inventário da Comunidade Quilombola de Pontinha” e a “Realização de levantamento, identificação e georreferenciamento de imóveis passíveis de regularização fundiária” previstos no Anexo 1.3 do Acordo assinado entre Vale, Estado e Instituições de Justiça.

Acompanham esta denúncia os documentos:

ACORDO JUDICIAL PARA REPARAÇÃO INTEGRAL RELATIVA AO ROMPIMENTO DAS

BARRAGENS B-I, B-IV E B-IVA / CÓRREGO DO FEIJÃO Processo de Mediação SEI n. 0122201-59.2020.8.13.0000 TJMG / CEJUSC 2o GRAU. Acesso pelo link: https://www.tjmg.jus.br/data/files/8D/20/B5/1A/87D67710AAE827676ECB08A8/Minuta%20versao%20final.pdf.pdf

Manifestação da Defensoria Pública da União na ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 790/DF (que pede a cassação da homologação do acordo judicial firmado no Processo de Mediação SEI 0122201-59.2020.8.13.0000 entre o Estado de Minas Gerais, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (DPMG) e o Ministério Público Federal (MPF), como compromitentes, e a Vale S.A., como compromissária). Acesso pelo link: https://www.dpu.def.br/images/stories/pdf_noticias/2021/peti%C3%A7ao_DPU_ADPF_790.pdf

Assinam este documento:

Comunidades Quilombolas Beira Córrego e Retiro dos Moreiras.

Comunidade Quilombola de Pontinha.

26 de março de 2021

 


 

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