Justiça por Bruno Pereira e Dom Phillips! Carta do DAA/UFMG

Nota de indignação ao caso extremo de violência na Amazônia, ocorrido em junho de 2022, e de apoio às vítimas e seus familiares, pelo Departamento de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

 

Indigenistas são profissionais que, na maioria das vezes, se formam na prática e no engajamento direto com a vida e a lida junto aos povos indígenas, para a proteção de seus modos de vida e territórios. A vida dos indigenistas, não raro, corre risco, exatamente por enfrentarem aqueles que querem saquear tais territórios e destruir tais modos de vida: madeireiros, garimpeiros, pecuaristas, caçadores e pescadores ilegais, missionários fundamentalistas.

É preciso ter muita força de vontade, vocação e contar com a colaboração dos próprios indígenas para exercer com lealdade essa profissão. Bruno Pereira, Pernambucano, chegou no Vale do Javari, na fronteira entre Brasil e Peru, para aprender com os povos dali, e ajudar a protegê-los, como disse Beto Marubo, importante liderança do União Indígena do Vale do Javari (UNIVAJA). O Vale do Javari abriga a maior concentração, em todo o mundo, de populações indígenas em situação de isolamento voluntário. Vale dizer que, quando se diz “voluntário”, entende-se que muitos ali estão “isolados” por saberem que o mundo do homem branco e dos saqueadores citados acima é perigoso e voraz – é preciso fugir dele.

Antropólogo/as e/ou etnólogo/as são pessoas que se formaram na universidade para estudar com os povos indígenas, que aprenderam a respeitar o modo de vida deles, a pensar e a agir no mundo a partir da compreensão desses modos de vida. Muitas vezes, etnólogo/as acabam também sendo indigenistas. Beatriz de Almeida Matos fez graduação em ciências sociais na UFMG, depois mestrado e doutorado em antropologia social no Museu Nacional da UFRJ; é filha da professora aposentada da Faculdade de Letras da UFMG, Maria Inês de Almeida, e do físico formado pela UFMG (e também educador e indigenista), Kleber Gesteira e Matos. Hoje, Beatriz é professora de antropologia e etnologia indígena na UFPA. Ao fazer pesquisa de campo para a pós-graduação no Vale do Javari, ela conheceu o indigenista Bruno Pereira, se casaram e tiveram dois filhos, que hoje têm dois e três anos de idade.

Jornalistas, às vezes, podem exercer uma função parecida com a da antropologia, se o profissional estiver interessado em conhecer a diversidade de línguas e dos povos indígenas. Se quiserem defender os direitos destas populações, jornalistas podem facilmente converterem-se ou serem vistos como indigenistas. Dom Phillips foi um desses, apaixonado pelos índios e pela Amazônia, fazia um jornalismo de investigação profunda, tal como o antropólogo: caneta na mão e caderno sobre os joelhos, sabia ouvir, anotar, fazer amigos, escrever.

No começo de junho de 2022, Bruno Pereira e Dom Phillips se juntaram nas proximidades da Terra Indígena do Vale do Javari para pesquisar e escrever sobre as ameaças, cada vez mais agressivas e vorazes, dos traficantes, criminosos, cobiçadores e exploradores dos povos indígenas. No dia 05 de junho, de volta para casa, numa lancha e descendo o rio em direção à cidade de Atalaia do Norte, desapareceram. Ao que tudo indica, foram vítimas de uma emboscada, encomendada por pessoas poderosas, pessoas contra os povos indígenas e a Amazônia, contra os parceiros da causa em favor da floresta e da vida.

Pouco antes, balsas de garimpo haviam sido destruídas nos rios da região. Isto se deu após denúncias de Bruno Pereira, indigenista e servidor público da Funai. Ao fazer tais denúncias, Bruno ajudava a proteger os povos indígenas – cumpria, portanto o papel atribuído constitucionalmente ao órgão do qual fazia parte. Exatamente por isto, por cumprir seu papel, foi destituído pela atual gestão da Funai (presidida por um delegado de Polícia, Marcelo Xavier) da função que ocupava, de Coordenador Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC). Diante disso, Bruno se licenciou, sem vencimentos, da Fundação Nacional do Índio, para atuar como assessor da União Indígena do Vale do Javari. Na nova função, Bruno passou a organizar uma equipe de indígenas na proteção do seu território, e, pelo seu trabalho, ganhou reconhecimento nos meios nacionais e internacionais em defesa dos direitos humanos e da luta ambiental pela proteção da Amazônia. Em outras palavras, não havia nada de “aventura” naquilo que Bruno, em companhia de Dom, fazia quando desapareceu. Ele cumpria sua função profissional e sua vocação, num território que conhecia profundamente e com o qual estava há muitos anos comprometido.

Foi por esse comprometimento que Bruno, como vários outros indigenistas e ambientalistas, passou a ser perseguido pelos criminosos citados acima. A perseguição é algo que indigenistas antigos e novos conhecem bem, mas nos últimos anos ela tem se amplificado enormemente, uma vez que os perseguidores passaram a contar com a cumplicidade do atual governo federal.

Para aqueles que por ventura possam ter ainda alguma dúvida, basta ler o dossiê, de mais de 200 páginas, produzido pela INA (Indigenistas Associados, uma associação de servidores da própria Funai) e pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos): https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2022/06/Fundacaoanti-indigena_Inesc_INA.pdf. Aqui, o leitor pode consultar os dados para saber como, no governo militarizado de Bolsonaro, o órgão constitucional de proteção e promoção dos direitos indígenas, a Funai, se converteu num órgão “anti-indígena”, a serviço de fazendeiros, grileiros, garimpeiros e tantas outras atividades, na verdade, ilegais ou anticonstitucionais.

Na ausência de palavras que possam definir toda nossa indignação, esta é uma carta de revolta dos professores e professoras do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG, de repúdio pela violência cometida contra Bruno Pereira e Dom Phillips: queremos que este crime seja investigado, que os responsáveis sejam descobertos e levados à justiça! Este não é um caso isolado, vivemos em tempos terríveis e não podemos meramente esperar para ver quem serão as próximas vítimas! Esta carta é escrita na esperança de que o acontecido reverbere em uma onda de indignação nacional e sirva para mudar os rumos da Amazônia e do Brasil. A carta é também para nos solidarizar com as famílias de Bruno Pereira e ao Dom Phillips, com todos e todas indigenistas e jornalistas em luta pela causa ambiental e que, de forma sistemática, sofrem todo tipo de ameaças e de riscos no exercício de uma profissão. Profissão esta que, dito de maneira simples, é simplesmente a da proteção da vida e dos direitos humanos.

 

Docentes do DAA / UFMG, amigos de Beatriz, colegas de Bruno, admiradores de Dom.

 

Para baixar a carta em PDF: Carta Dom e Bruno DAA UFMG

 

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