ÚLTIMA ATUALIZAÇÃO

05/12/2012

ATORES ENVOLVIDOS

Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG); Centro de Assessoria aos Movimentos Populares do Vale do Jequitinhonha (Campo-Vale); Comissão dos Atingidos pela barragem de Irapé (composta por representantes das comunidades rurais, de associações, de Sindicatos de Trabalhadores Rurais); Comissão Pastoral da Terra (CPT); Comunidades Rurais; ONG Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES); ONG internacional Foodfirst Information and Action Network (FIAN); Federação Estadual dos Trabalhadores da Agricultura de Minas Gerais (FETAEMG); Fundação Cultural Palmares (FCP); Comunidade Quilombola Porto Corís; Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA/UFMG); Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN); Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Botumirim (STR de Botumirim); Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cristália (STR de Cristália); Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Grão Mogol (STR de Grão Mogol); Sindicato dos Trabalhadores Rurais de José Gonçalves de Minas (STR de José Gonçalves de Minas); Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Leme do Prado (STR de Leme do Prado); Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Turmalina (STR de Turmalina); Ministério Público Estadual; Ministério Público Federal; Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais (COPAM); Fundação Estadual de Meio Ambiente (FEAM); Departamento Nacional de Energia Elétrica (DNAEE) e Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL); Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB); Membros da Universidade Federal de Lavras; Procuradoria da República em Minas Gerais.

MUNICÍPIO

Botumirim, Cristália, Grão Mogol, Berilo, José Gonçalves de Minas, Leme do Prado, Turmalina

CLASSIFICAÇÃO GERAL E ESPECÍFICA

Infra-Estrutura (Energia)

Atividades / Processos Geradores de Conflito Ambiental

Hidrelétrica

Descrição do caso:
(população afetada, ecossistema afetado, Área atingida, histórico do caso)

 

O projeto de construção da usina hidrelétrica de Irapé (UHE Irapé) surgiu com o estudo denominado “Aproveitamento do Potencial Energético da Bacia do Jequitinhonha”, realizado pelo consórcio Canambra Consulting Engineers Limited, no início da década de 60. Contudo, o aprofundamento deste estudo só ocorreu posteriormente, através dos “Estudos de Inventário da Bacia do Jequitinhonha”, elaborado pela CEMIG, em 1987. 

 

O barramento do rio Jequitinhonha proposto pela construção de Irapé é um paredão de 208 metros de altura, o mais elevado do Brasil. Conta ainda com 540 metros de comprimento que representa o vão do vale onde está localizado o eixo da barragem. O empreendimento se encontra entre os municípios de Berilo e Grão Mogol, 2 km a jusante da confluência com o rio Itacambiruçu. São três turbinas com capacidade para gerar 120 MW cada, perfazendo a potência instalada máxima de 360 MW (ZUCARELLI, 2006). 

 

Em 1988, a CEMIG, empresa concessionária do projeto da UHE Irapé, iniciou suas análises e diagnósticos necessários à elaboração dos Estudos de Impacto Ambiental e respectivo Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) na área da pretendida usina. Neste mesmo ano, surgiram as primeiras conversas e reuniões que propiciaram a criação da Comissão dos Atingidos pela Barragem de Irapé. A Comissão foi resultado das preocupações dos trabalhadores e sindicalistas rurais dos municípios atingidos, que intensificaram a organização após ter conhecimento da ameaça de deslocamento compulsório. As informações da existência de inúmeros problemas sociais e de experiências de resistência dos atingidos em outras construções de barragens na região e no país também contribuíram para a formação desta Comissão. 

 

Em junho de 1997, antes do julgamento da licença prévia (LP), ocorreu a 1ª Audiência Pública, em Acauã. Nessa Audiência, a Comissão dos Atingidos pela Barragem de Irapé levantou a possibilidade da comunidade Porto Corís, localizada no município de Leme do Prado-MG, ser remanescente de quilombo. Até então, a empresa não havia mencionado em seus estudos tal possibilidade. O Departamento Nacional de Energia Elétrica (DNAEE), que hoje se transformou na Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), chegou a suspender o processo licitatório para concessão do aproveitamento hidrelétrico de Irapé, em outubro de 1997, até que se “resolvesse” a questão desta comunidade diretamente atingida.

 

Naquele momento, foi solicitado um laudo pericial da Fundação Cultural Palmares, por se tratar de uma suspeita de remanescente quilombola. Este laudo pericial foi concluído em janeiro de 1998, confirmando a identidade quilombola da comunidade. Todavia, a Câmara de Bacias Hidrográficas do Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais (CBH/COPAM) já havia julgado procedente o estudo contratado pela CEMIG, em dezembro de 1997, cujo conteúdo afirmava que a comunidade de “Porto dos Corí” não era remanescente quilombola (GUIMARÃES, et al., 1997, p. 86). Assim, no dia 10 de dezembro de 1997, a CBH/COPAM, responsável à época pela deliberação das licenças ambientais para empreendimentos hidrelétricos no Estado, concedeu a licença prévia à UHE Irapé, atrelada à necessidade de cumprimento de 47 condicionantes estabelecidas no parecer técnico da Fundação Estadual de Meio Ambiente (FEAM). 

 

Em dezembro de 2000, a CEMIG apresentou no COPAM o PCA da Usina de Irapé, cumprindo o último requisito formal para a obtenção da licença de instalação do empreendimento, o que permitiria o início das obras de construção da hidrelétrica (MINAS GERAIS, 2010). Com o prosseguimento do licenciamento ambiental, múltiplos problemas continuavam em evidência. Várias denúncias de coações praticadas pela empresa de consultoria, contratada pela CEMIG para elaboração do Plano de Controle Ambiental (PCA), foram expostas pelos atingidos, o que acabou contribuindo para a mobilização da Comissão dos Atingidos e de sua assessoria, em prol de estratégias que assegurassem o direito ao reassentamento das famílias atingidas. É possível destacar três ações estratégicas adotadas, ao longo do processo, como forma de pressionar os órgãos estatais para o cumprimento dos direitos dos atingidos: 

1ª) Ações judiciais impetradas nas esferas estadual e federal;

2ª) Articulação para agregar novos parceiros institucionais;

3ª) Publicidade do caso. 

Ações judiciais impetradas nas esferas estadual e federal:

 

Quanto à primeira ação estratégica, a Comissão dos Atingidos pela Barragem de Irapé, juntamente com o Centro de Assessoria aos Movimentos Populares do Vale do Jequitinhonha (Campo Vale) entraram com duas representações no Ministério Público Estadual (MPE) e duas no Ministério Público Federal (MPF), contra a CEMIG e o estado de Minas Gerais. 

 

No âmbito do MPE, as ações não suscitaram grandes repercussões. Entretanto, o MPF abriu um procedimento de investigação de ofício para apurar as denúncias que foram entregues pelos atingidos. Como conseqüência, o MPF deliberou a execução de um laudo antropológico da analista pericial do Ofício da Tutela de Minorias, com o intuito de investigar a ocorrência de danos ao meio ambiente e se a comunidade quilombola Porto Corís havia sido devidamente considerada no estudo de impacto ambiental da usina hidrelétrica de Irapé. 

 

De acordo com a investigação apurada pelo MPF, para que o EIA cumprisse sua finalidade e para que os principais efeitos adversos da obra fossem evitados, era essencial que sua elaboração acatasse as diretrizes gerais do artigo 5º da Resolução CONAMA nº. 01/86, que não foram atendidas na elaboração, apreciação e aprovação do EIA/RIMA de Irapé. Além disso, o Ministério Público Federal julgou contraditória a análise feita pela FEAM dos estudos apresentados pela CEMIG, que admitiu a viabilidade socioambiental da UHE após ter observado os impactos do empreendimento e ainda advertiu para o fato de que o EIA postergava, para a próxima fase do licenciamento, alguns estudos próprios da fase de viabilidade. Também foi questionado pelo MPF o porquê da FEAM ter solicitado ao próprio empreendedor, a CEMIG, a elaboração do laudo que atestava ou não se a comunidade de Porto Corís era remanescente de quilombo, já que a empresa tinha interesses específicos no desenvolvimento do projeto apresentado para licenciamento. Além disso, o Ministério Público questionou o motivo de não ter sido suspensa a análise de EIA/RIMA de Irapé até que a Fundação Cultural Palmares pudesse se pronunciar sobre a questão. 

 

Foi constatada na análise do Ministério Público Federal que devido ao tratamento conferido à comunidade de Porto Corís, que negava a especificidade própria da comunidade negra, o EIA de Irapé não era válido. A CEMIG e os órgãos ambientais desqualificaram-na como um interlocutor que apresenta identidade étnico-cultural própria e impediram-na de participar efetivamente do processo de discussão e aprovação dos estudos. Além disso, a subestimação dos impactos negativos sobre as tradições e valores do grupo, que se atrelam ao próprio reconhecimento da comunidade como remanescente de quilombo, acabou impondo distorções significativas na formação do juízo de viabilidade socioambiental do empreendimento. Assim, de acordo com a perita do MPF, nem mesmo as emendas ao EIA/RIMA supririam as lacunas e irregularidades identificadas, que só poderiam ser reparadas pela reelaboração, por completo, do procedimento de EIA/RIMA, no qual não só seriam avaliados adequadamente os impactos do empreendimento sobre a comunidade de Porto Corís, como seria concedida ao grupo a imprescindível oportunidade de participar do processo de formação do juízo de viabilidade socioambiental de Irapé.

 

Além de Porto Corís, não foram reconhecidas no procedimento diversas outras comunidades localizadas na área diretamente afetada pelo empreendimento e suas frágeis e específicas estratégias de reprodução social, baseadas em um complexo sistema de posse comunal da terra, próprio do alto Jequitinhonha e conhecido pela denominação de “terra no bolo” (MINAS GERAIS, 2010). Essas comunidades, denominadas como tradicionais, são compostas de aproximadamente 3000 pessoas e possuem o direito coletivo fundamental de terem suas manifestações sócio-culturais protegidas pelo Estado, pois em virtude de expresso comando constitucional, constituem parte integrante do patrimônio cultural brasileiro. O MP termina sua análise ao concluir que as características de vida dessas populações do Alto Jequitinhonha foram completamente desprezadas no EIA de Irapé. Foi questionada a forma como foi determinada a área diretamente afetada (ADA) do empreendimento, que partiu de uma divisão arbitrária do ponto de vista das territorialidades locais, tendo sido definida exclusivamente a partir da obra, sem levar em consideração os limites das comunidades e seus territórios. A afetação de uma parcela de um território comum atinge diretamente todas as famílias do grupo que detém aquele território, mesmo que elas não estejam no momento produzindo em terrenos incidentes na ADA. Além disso, o EIA não continha descrições das atividades de extração (com exceção do garimpo) praticadas pelos pequenos produtores, não considerando o uso das chapadas para essas pessoas para fins de avaliação dos impactos, seja do ponto de vista do prejuízo às atividades ali desempenhadas, seja do ponto de vista fundiário. Dessa forma, o MPF constatou a impossibilidade da remoção e realocação dessas pessoas sem uma significativa perda de suas tradições e de seus modos e estratégias de reprodução social.  

 

Juntada e analisada toda a documentação proveniente do empreendimento em questão, o MPF propôs Ação Civil Pública com pedido de liminar contra o estado de Minas Gerais, a FEAM e a CEMIG, como medida cautelar destinada a suspender o processo de licenciamento ambiental da UHE Irapé. O objetivo desta Ação era garantir, principalmente, os direitos reivindicados pela comunidade Porto Corís e o cumprimento dos reassentamentos das famílias atingidas. O MPF solicitou para tal, a elaboração, análise e aprovação de um novo EIA/RIMA. 

 

No entanto, o Juiz de plantão da 21ª Vara Federal de Belo Horizonte-MG, que recebeu a Ação, cassou a liminar do MPF. Diante das pressões públicas nacionais e internacionais (terceira estratégia adotada pela Comissão dos Atingidos e parceiros institucionais), o MPF emitiu outra Ação Civil Pública, em março de 2002, desta vez incluindo a ANEEL, entre outros, como réu no processo. Mas, a Decisão do Juiz da 21ª Vara Federal foi novamente pelo indeferimento da segunda Ação Civil Pública, o que proporcionou a continuidade do licenciamento ambiental da Usina de Irapé. 

 

Articulação para agregar novos parceiros institucionais:    

A segunda ação estratégica foi fundamentada na articulação da Comissão dos Atingidos e do Campo Vale para ampliar a parceira com outras entidades e instituições. Já se constituíam como atores nesse processo, no período inicial da luta social, membros da Universidade Federal de Lavras, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais (FETAEMG) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Ao longo do processo foram sendo agregados: a ONG Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva (CEDEFES), o Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais (GESTA/UFMG) e a ONG internacional Foodfirst Information and Action Network (FIAN). 

 

A articulação de diversos segmentos de apoio aos direitos dos atingidos de Irapé proporcionou a adição de capital político e técnico aos objetivos da Comissão dos Atingidos e de sua assessoria. O resultado imediato foi a maior visibilidade nacional e internacional dada ao caso da construção da UHE Irapé. 

 

Publicidade do caso:

 

A visibilidade pública constitui a terceira ação estratégica adotada pela Comissão dos Atingidos pela Barragem de Irapé, assessoria e parceiros. A estratégia de dar publicidade ao licenciamento de Irapé ocorreu por duas vias:

 

1ª) reuniões na Assembléia Legislativa de Minas Gerais;

2ª) exposição pública do desrespeito aos direitos transindividuais dos atingidos, através de várias campanhas de cartas no âmbito nacional e internacional.

As denúncias quanto às ameaças sofridas pelos atingidos durante a elaboração do PCA foram levadas à Assembléia Legislativa de Minas Gerais, em caráter de Audiência Pública, em setembro de 2001. 

 

Quanto às campanhas de cartas, o primeiro contato internacional foi estabelecido com a ONG Foodfirst Information and Action Network (FIAN) que é uma rede de membros, seções e coordenações em mais de 60 países, ligada a ONU, cujo objetivo principal é informar e promover o direito humano fundamental a se alimentar. Logo em seguida, por intermédio dessa entidade, outros organismos internacionais tomaram conhecimento do caso e começaram uma intensa campanha de cartas que foram enviadas aos órgãos ambientais de Minas Gerais. Tal campanha repercutiu entre diversos segmentos do estado, suscitando respostas e explicações por parte dos governantes, dos órgãos ambientais e dos prefeitos da região afetada pela usina. Com isto, criou-se um fato inédito na história do licenciamento ambiental de hidrelétricas no estado de Minas Gerais. Com a repercussão do caso, a imprensa brasileira (como Estado de Minas, a Viaecologia, a Folha de São Paulo, entre outros) também passou a noticiar alguns impactos da hidrelétrica, principalmente, referentes à comunidade quilombola de Porto Corís.

 

No dia 26 de abril de 2002, aconteceu no prédio da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (SEMAD) a reunião ordinária da Câmara de Infra-Estrutura, cuja pauta trazia o pedido da Licença de Instalação para a UHE Irapé. Mesmo com todas as advertências do novo parecer técnico da FEAM que recomendava a inviabilidade ambiental do empreendimento, e com toda a pressão de diversas entidades sociais que participaram da reunião e que advertiam sobre os riscos da concessão da LI, os conselheiros componentes da Câmara de Atividades de Infra-Estrutura do Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais (CIF/COPAM) concederam a Licença de Instalação, desta vez, condicionada à assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). 

 

Apesar de ter sido considerado, na época, o melhor TAC do Brasil, o seu cumprimento ia se arrastando à despeito dos prazos estabelecidos nele. Uma data emblemática no processo de licenciamento ambiental da usina de Irapé foi o dia 04 de fevereiro de 2004. Nessa ocasião, após vários prorrogamentos dos prazos pré-estabelecidos no Termo e outros pedidos de execução judicial do mesmo, cerca de 250 atingidos ocuparam a sede da CEMIG, em Belo Horizonte-MG, como forma de pressionar e garantir a plenitude de seus direitos transindividuais. Depois de uma tarde de reunião, de dormirem no auditório da empresa e de mais uma reunião na parte da manhã do dia 05/02/2004, nada foi acordado. Assim, os atingidos escolheram 50 representantes das famílias para se reunirem com o Procurador da República no Ministério Público Federal. Nesta reunião, a CEMIG também esteve presente. Ao final, foi “negociada” e deliberada, mais uma vez, a prorrogação dos prazos para apresentação final dos cadastros patrimoniais (20/03/2004) e das terras para o reassentamento das famílias atingidas (30/03/2004). 

 

O desrespeito aos direitos humanos, constatados no processo, novamente foi objeto de crítica em 2004, desta vez, pela Relatoria da Plataforma de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais” (Plataforma DHESC), que faz parte do Programa de Voluntários das Nações Unidas (UNV-PNUD).

 

Em todas as reuniões da CIF/COPAM em que Irapé estava em pauta, a FEAM apresentava relatórios fundamentados em vistorias no campo, que comprovavam os atrasos relativos ao reassentamento das famílias atingidas pela UHE Irapé. Entretanto, a despeito destes pareceres, a CEMIG entrou com o pedido de concessão da Licença de Operação, em 13 de maio de 2005. Essa solicitação foi levada a julgamento na reunião extraordinária do dia 02 de dezembro de 2005, que acabou por conceder a última licença ao empreendimento e, mais uma vez, condicionada à um mecanismo flexibilizante (ZUCARELLI, 2006), - um “cheque caução” - para a complementação dos reassentamentos que ainda não haviam sido concluídos. 

 

Diante das evidências de risco à população, com a postergação dos prazos para o cumprimento integral do TAC, e diante dos relatos dos atingidos que expunham essa situação de risco nos reassentamentos, a Procuradora da República em Minas Gerais executou, no dia 07/12/2005, o Termo. A ação foi ajuizada na 21ª Vara Federal, em Belo Horizonte. O juiz deferiu a liminar pleiteada, através de uma tutela inibitória, determinando que a CEMIG não procedesse ao fechamento do túnel de desvio do curso dágua/comporta enquanto não estivessem finalizadas todas as pendências relativas às cláusulas do Termo de Acordo, sob pena de multa diária de R$500.000,00 (quinhentos mil reais) por eventual descumprimento. Ficou determinado, ainda, a citação da CEMIG para o cumprimento de todas as condicionantes do Termo num prazo máximo de 120 dias.

 

Contudo, em momento anterior ao recebimento da intimação da decisão concessiva de tutela inibitória, expedida pelo juiz da 21ª Vara Federal à CEMIG, o túnel de desvio do curso do rio Jequitinhonha foi fechado e o reservatório da usina começou a ser formado. Essa autorização foi dada no dia anterior (06/12/2005 - quatro dias após a reunião extraordinária da CIF), através de uma decisão do presidente da FEAM, que “calculou” a caução fiduciária baseada somente nos 48% dos reassentamentos analisados por sua equipe técnica, a despeito da reunião da CIF/COPAM, ocorrida no dia 02/12/2005, na qual se confirmou a necessidade de vistoriar e fazer o levantamento de todos os reassentamentos para a elaboração da “caução fiduciária”.

 

Com o “fato consumado” e diante da impossibilidade de reversão do processo de formação do lago da hidrelétrica, ocorreu no dia 13 de dezembro de 2005 uma audiência “conciliatória”, no qual o mesmo juiz da 21ª Vara Federal revogou a tutela inibitória. 

 

A construção da usina hidrelétrica de Irapé (renomeada para usina hidrelétrica Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, em setembro de 2002) inundou parte de 7 municípios mineiros, totalizando 137,16 km2, nos quais estavam 90 Km2 de vegetação nativa (cerrado e caatinga) bem preservados. O remanso do reservatório atingiu um trecho de 101 km do rio Jequitinhonha e 47 km do rio Itacambiruçu. Cerca de 1.200 famílias de 51 comunidades distribuídas às margens desses rios e de seus afluentes tiveram suas terras inundadas. As 51 comunidades são: Acauã, Alegre de Baixo, Alegre de Cima, Baixão, Bananal, Barreiro, Comunidade do eixo da usina - Berilo, Bocaina, Bonito, Bugi, Buriti, Buriti Quebrado, Cabra, Cachoeira, Cana Brava, Capão, Carqueja, Catinguinha, Catutiba, Córrego do Engenho, Degredo, Gangorrinha, Gigante, Igicatu, Itacambiruçu, Itapacoral, Jacuba, Malhada, Mandacaru, Mandassaia, Noruega, Oro Podre, Paiol, Palmito, Peixe Cru, Porto Corís, Posses, Quebra-bunda (Quebra-bó), Retiro, Ribeirão Corrente, Ribeirão da Larga, Santa Cruz, Santa Maria, Santa Rita, São Bento, São Miguel, Serafim, Soberbo, Sussuarana, Ventania e Zé de Barros.

 

Dentre os problemas mais graves ocorridos, pode-se destacar três: 

 

1) A perda de quatro safras agrícolas (2002/2003; 2003/2004; 2004/2005; 2005/2006);

 

2) Rompimento dos laços sociais com o desmembramento dos núcleos familiares através das múltiplas divisões dos grupos de reassentamento (os 24 grupos iniciais se desmembraram em mais de 100 grupos, realocados em 103 propriedades localizadas em 17 municípios);

 

3) A dúvida quanto à sustentabilidade dos reassentamentos por causa da delimitação dos lotes e da qualidade de algumas terras escolhidas pelos atingidos. Algumas famílias, até mesmo por pressão política, acabaram escolhendo terras inferiores ao que estava estabelecido no Termo de Acordo. Algumas comunidades foram pressionadas a permanecerem em seus municípios de origem (como por exemplo, nas cidades de Turmalina e Cristália), nos quais prefeitos e vereadores pretendiam garantir seus eleitores e a verba do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), destinada às prefeituras, via Governo Federal, conforme o número de habitantes residentes nos municípios. Muitas famílias ficaram nas chapadas, longe de rios e de qualquer outro tipo de água superficial. Dessa forma, a manutenção do sistema de bombeamento da água para os reassentamentos e outros gastos relativos ao uso de corretivos para o solo, no caso do preparo da terra para o plantio, implicam ônus adicionais que não existiam na terra de origem. 

 

Conforme informado pelo representante do STR de Botumurim, ainda existem diversos casos de reassentamentos em áreas com solos pouco férteis, comprometendo a agricultura tradicionalmente praticada por diversas famílias, o que é agravado em épocas de seca pela diminuição da vazão dos rios que abastecem a região (o que é intensificado à jusante da barragem de Irapé). De acordo com o representante da Cáritas de Araçuaí, as famílias de Peixe Cru foram realocadas na beira da estrada, distante da beira do rio (onde viviam) e das terras onde trabalhavam. Ainda segundo esse representante, as informações são transmitidas pela CEMIG às comunidades atingidas por meio de um linguajar extremamente técnico, o que dificulta a resolução de diversos problemas.

 

Segundo o relato do representante do STR de Botumirim, a CEMIG não está preocupada com os moradores que foram reassentados, pois os mesmos continuam sem documento das terras e água potável. Segundo a CEMIG, das 638 famílias que optaram pelo reassentamento, 196 títulos de terra foram entregues até maio de 2009, 286 estão em processo de regularização e 156 famílias vivem em fazendas que aguardam decisão judicial definitiva para a emissão da titulação. Para o representante dos atingidos pela barragem de Murta, outra questão preocupante é a contaminação da água à jusante da barragem de Irapé, uma vez que análises da água identificaram a presença de ácido sulfúrico, produto da reação da água com sulfetos, encontrado nas rochas da região. A presença dos sulfetos e do ácido sulfúrico já era conhecida antes da construção da usina, uma vez que diversas medidas foram adotadas para impedir a corrosão resultante do contato do concreto (material que compõe as estruturas da barragem) com o ácido, tais como o revestimento das estruturas com concreto específico e o tratamento superficial das mesmas, para impedir o contato direto do concreto com a rocha e/ou a água.

 

Além disso, de acordo com inquérito civil n°. 0073.07.000009-3 do MPE, em fevereiro de 2006, a PM produziu um Boletim de Ocorrência (BO) ao fiscalizar o processo do Instituto Estadual de Florestas (IEF) que autorizava a CEMIG a realizar corte raso com destoca de 88 hectares de cerrado e limpeza de pasto em 67 hectares em uma fazenda de propriedade da empresa, adquirida com o objetivo de reassentar 31 famílias do Projeto Irapé. Foi constatado na vistoria da polícia que foram desmatadas cerca de 7.830 árvores e a CEMIG teve que comparecer à PM de Bocaiúva para prestar esclarecimentos. 

 

Em janeiro de 2007, o MPE recebeu denúncia mediante a apresentação de carta de um dos reassentados denunciando situações irregulares no reassentamento na Fazenda Alegre, município de Josenópolis, proveniente de Irapé. Constam na carta denuncias quanto ao cadastramento de remanescentes na área de reassentamento, às baixas indenizações das benfeitorias e imóveis existentes na área, às condições precárias das estradas que dão acesso ao local, à longa distância entre o reassentamento e a cidade, à falta de acesso à comunicação, à não instalação de linha telefônica por parte da CEMIG, além da não reforma feita pela empresa da escola e do posto saúde do Alegre II próximos ao reassentamento. Dessa denúncia, instaurou-se um procedimento, mas em 2010, o procurador de Justiça reconheceu faltar-lhe atribuições para atuar no caso, determinando a devolução dos autos a Procuradoria da República em Minas Gerais (PRMG), para a adoção das providências julgadas cabíveis. 

 

Em 18/04/2007, a Fundação Cultural Palmares encaminha à 6ª Câmara da Procuradoria da República ofício que relata denúncias diversas recebidas pela diretoria da Fundação durante sua visita às comunidades remanescentes de quilombo do norte de Minas Gerais. No caso de Porto Corís a denúncia versa sobre algumas irregularidades observadas no reassentamento da comunidade implementado pela Companhia Energética de Minas Gerais em função da hidrelétrica de Irapé. As irregularidades dizem respeito à titulação da terra, a qual até a data referida não havia sido entregue à comunidade, e ao fornecimento de água. Quando a visita da diretoria da Fundação Cultural Palmares ao reassentamento foi feita, o sistema de abastecimento de água disponibilizado pela CEMIG não estava funcionando e os moradores atravessaram 12 dias privados do abastecimento. Contudo, a despeito do fornecimento irregular de água a comunidade enfrenta dificuldades para a quitação das contas de energia, cujo custo foi elevado consideravelmente após a instalação das famílias no reassentamento, posto que o abastecimento opera por meio de bombas elétricas. O ofício da Fundação Palmares relata ainda que alguns moradores estariam vendendo sua posse a pessoas estranhas à comunidade, o que ocasionava problemas de convivência e até mesmo ameaças de morte feitas aos representantes da Associação que se opõem às transações. 

 

Em reportagem do dia 22 de maio de 2011, o jornal Hoje em Dia denunciou a precariedade das condições de vida nos reassentamentos feitos pela CEMIG. Moradores do assentamento Nova Esperança relataram que faltava água no assentamento e que o bombeamento trazia água com elevado teor de calcário (além da capacidade de processamento dos dessalinizadores instalados), impossibilitando seu uso tanto para uso direto como para irrigação das plantações. O bombeamento também fez a conta de energia elétrica atingir valores impagáveis pelos moradores. Na data da reportagem, das 29 famílias reassentadas em Nova Esperança, 12 já haviam ido embora. (HOJE EM DIA, 2011).

 

Durante a oficina de atualização do Mapa dos Conflitos Ambientais de Minas Gerais, ocorrida na Mesorregião Jequitinhonha em 01/09/2012, além dos problemas citados acima, outros foram relatados pelos atingidos por Irapé. Em Nova Esperança a água deveria ser bombeada e distribuída para a comunidade, porém, este processo teria funcionado normalmente por nove dias, desde então, os reassentados vem sofrendo com a precariedade da distribuição deste serviço que além de distribuir a água com elevado teor de calcário, distribuir também água com lama que é imprópria para o consumo, sendo utilizada apenas para a dessedentação dos animais. Para amenizar a situação, os reassentados de Cristália, Botumirim e Grão Mogol  se deslocam por grandes distâncias para obter  este recurso nas margens do rio.

 

No que se refere à documentação dos terrenos, o relator informou que muitos assentamentos continuam sem as referidas titulações. Assim, nas Fazendas de Muquém e em Nova Esperança, a justificativa utilizada pelos empreendedores para a ausência de titulação consiste na necessidade de uma nova demarcação do terreno, uma vez que, existem áreas que não têm delimitações definidas ou excedem as dimensões combinadas. Tal situação tem ocasionado mais conflitos, pois há famílias que tentam investimentos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), mas são impossibilitadas de captarem os recursos pela inexistência de títulos das terras. Mesmo a CEMIG concedendo aos reassentados um Termo de Uso da Terra, tal documento não é aceito para obtenção de licenças para cultivo.  Logo, os projetos são rejeitados pelos órgãos financiadores e as famílias ficam impossibilitadas de produzirem.

 

Outro fator relatado na Oficina é a dificuldade de organização em comissão, pois os atingidos se dispersaram após a criação dos assentamentos e atualmente não há mais encontros para as discussões dos problemas enfrentados pelas comunidades. Mesmo assim, as reivindicações acontecem isoladamente e são constantes as cobranças feitas pelos atingidos que questionam e pedem  atitudes concretas da CEMIG.

 

De acordo com outro atingido pela barragem, os problemas não são observados isoladamente e tanto a situação crítica de ausência de água, quanto à falta de documentação das terras são observadas em todos os trechos atingidos pelo empreendimento. Inclusive, o mesmo informou que a Condicionante nº 8 imposta pela Renovação da Licença de Operação (em anexo) exige que a CEMIG deverá apresentar até janeiro de 2013 a titulação das terras para os reassentados ou discutir e expor alternativas que regularize a atual situação, por exemplo, a compra de novos terrenos para as famílias. Outro ponto relatado foi a grande preocupação com as vendas dos terrenos para os fazendeiros da região que adquirem as terras dos assentados e desmatam os 20% das reservas legais, mesmo não sendo permitido na legislação brasileira. Desde modo, quando são descobertas tais ações, os fazendeiros simplesmente pagam as multas fruto das infrações, mas as áreas permanecem desmatadas. Além disso, observa-se em toda a região o plantio intenso de eucalipto que vem contribuindo para o assoreamento do leito do rio e deixando os moradores receosos e com medo de acidentes que podem ser ocasionados pela acumulação de sedimentos na barragem.

 

Os relatores informaram ainda que na Fazenda Muquém há empresas de pesquisa estudando a área em busca de minério e gás natural o que vem provocando insegurança e perturbando as famílias que já foram atingidas por Irapé e estão receosas com a possibilidade de outros grandes empreendimentos. Nas palavras do relator “trazendo a ideia de um falso progresso que não existe”.Adiciona-se ainda, as precariedades das estradas de acesso aos municípios que estão abandonadas e não passam por manutenção, exceto aquelas utilizadas pelas empresas de eucalipto.

 

De acordo com o representante do assentamento de Bela Vista, pertencente ao núcleo de Botumirim formado atualmente por  38 famílias, o local é um dos assentamentos em situação mais crítica na região, uma vez que a terra é de péssima qualidade e há disputas pela reintegração de posse do terreno.Sendo assim, as terras em que a CEMIG  reassentou alguns núcleos familiares vem sendo reivindicadas por outra empresa que  alega ser a proprietária de todo o terreno do assentamento. Desta forma, em novembro de 2011 o sindicato da região foi informado por um oficial de justiça que todas as escrituras estão correndo o risco de serem anuladas. Diante disso, a situação é extremamente preocupante, pois os moradores da comunidade de Bela Vista, além de sofrerem pela ausência de água há mais de quatro anos, mesmo possuindo os documentos registrados de titulação dos imóveis, podem ficar sem suas propriedades. Com o objetivo de esclarecer tal fato, o morador procurou o cartório de Grão-Mogol e localizou a certidão de compra e venda do terreno, mas mesmo assim, isso não reverteu à situação e, no final de agosto de 2012, foram realizadas novas vistorias com o objetivo de anular todas as escrituras.

 

Diante das exposições, todos os relatores informaram que as questões que se referem aos conflitos e injustiças sociais ocasionadas pela construção da Hidrelétrica de Irapé foram denunciadas ao Ministério Público Federal.

 

Fonte(s):

 

 CEMIG Geração e Transmissão S.A.-UHE de Irapé- Barragem de Geração de Energia Hidrelétrica- Berilo /MG-PA/Nº 00094/1994/006/2009. 

 

COMPANHIA ENERGÉTICA DE MINAS GERAIS (CEMIG). Usina de Irapé - A Usina. Histórico de Irapé. Disponível em: <http://www.irape.com.br/usina/index.asp>. Acesso em: 20 de julho de 2010.

 

FUNDAÇÃO ESTADUAL DE MEIO AMBIENTE (FEAM). Parecer Técnico DIENI 035/2002 (Processo COPAM: 00094/1994/002/2001). Belo Horizonte, 2002.

 

FUNDAÇÃO ESTADUAL DE MEIO AMBIENTE (FEAM). Parecer Técnico DIENE 018/2005 (Processo COPAM: 00094/1994/005/2005). Belo Horizonte, 2005.

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