Viver com medo

Anglo American obterá licença para operar barragem, mas não reassenta moradores

 

O esperado é que a mineradora Anglo American receba nesta sexta-feira (21/12), do governo do Estado, a licença para operar as estruturas ampliadas da sua mina de ferro em Conceição do Mato Dentro. Também é esperado que nada mude na situação das três comunidades localizadas logo abaixo da gigantesca barragem de rejeitos, que se tornou ainda maior depois das obras de ampliação.

Atualmente, praticamente inexiste oposição ao projeto dentro do Câmara Técnica de Atividades Minerárias, do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam), que votará a concessão da Licença de Operação nessa última reunião do ano. Em janeiro, dos 12 conselheiros da Câmara Técnica, 11 votaram a favor da concessão das licenças prévia e de instalação, que permitiram a realização das obras de ampliação da mina e o alteamento da barragem de rejeitos (único voto contrário foi de Maria Tereza Corujo, a Teca, representante do Fórum Nacional da Sociedade Civil na Gestão de Bacias Hidrográficas). Dessa forma, a aprovação, agora, da Licença de Operação é encarada apenas como um passo burocrático, de resultado certo a favor da mineradora.

Mas e as comunidades? Mesmo sem a pretensão de influir no resultado da votação, representantes dos moradores das comunidades de São José do Jassém, Água Quente e Passa Sete estarão presentes à reunião (Rua Espírito Santo, 495, Centro, 9h). Eles reivindicam que sejam reassentados em outra área, de maneira negociada coletivamente e de modo a preservar a estrutura e o modo de vida e de produção comunitários.

Eles querem sair de onde estão principalmente por questões ligadas à água, mas não apenas. Também estão aterrorizados desde o acidente da Samarco, em Mariana, quando o rompimento da barragem de Fundão matou 17 pessoas e arrasou a comunidade de Bento Rodrigues. Em Conceição do Mato Dentro, são 107 famílias que integram as três comunidades rurais, localizadas imediatamente a jusante da barragem de rejeitos. Na comunidade de Passa Sete, existem famílias morando a pouco mais de um quilômetro da barragem, enquanto em Bento Rodrigues a distância era de cinco quilômetros de Fundão. Jassém dista entre sete e dez quilômetros e Água Quente, entre três e quatro quilômetros.

Estão, uma atrás da outra, no fundo do vale no qual serpenteiam os córregos que trazem as águas que saem da barragem. Essa área é classificada tecnicamente como “zona de não salvamento”. Uma classificação macabra. Significa que, em caso de rompimento da barragem, não existe o que fazer para evitar danos e mortes.

O medo é o de que a barragem se rompa, carregando as três comunidades de roldão sob a lama, a exemplo do acidente de Mariana. Mas, em Conceição do Mato Dentro, o estrago seria ainda maior. A barragem da Anglo American, depois de completada a ampliação, terá capacidade sete vezes maior que a da Samarco que se rompeu.

Além do medo, os moradores afirmam que os rios e córregos da região estão sujos, perderam volume e cheiram mal, e que muitas nascentes secaram. Mortandades sucessivas de peixes tiraram das refeições das comunidades essa tradicional fonte de proteína. Com restrições ao uso da água, antigas relações sociais e econômicas baseadas no uso coletivo da terra estão se desfazendo. A criação de animais foi dificultada e a produção agrícola, em grande parte para subsistência, caiu fortemente. A água para consumo humano, higiene e limpeza doméstica agora vem quase que exclusivamente de poços artesianos, já que muitas das bicas de quintal secaram. Para molhar a horta, agora é preciso caminhar para buscar água. Nenhuma criança brinca mais nos rios e córregos.

Todos estes problemas estão literalmente mapeados. Ao longo deste ano, os moradores de Jassém, Passa Sete e Água Quente desenharam os mapas de suas comunidades, apontando todas as construções, áreas agricultáveis, matas, rios, córregos, nascentes e outros. E indicaram nos mapas as interferências na natureza e no modo de vida comunitário desde a construção da barragem da Anglo American.

Os três mapas estão publicados em formato de revista que será distribuída nas comunidades e, nesta sexta-feira, aos conselheiros da Câmara Minerária do Copam. A produção dos mapas integra o Programa Nova Cartografia Social da Amazônia, uma iniciativa dos professores da Universidade Federal da Amazônia Alfredo Wagner Berno, Cynthia Martins e Rosa Acevedo Marin. Em Conceição do Mato Dentro, o projeto foi coordenado pela professora de antropologia da UFMG, Ana Flávia Moreira Santos, e implementado com apoio do Gesta/UFMG (Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais da UFMG) e do Reaja (Rede de Articulação e Justiça Ambiental dos Atingidos pelo Projeto Minas-Rio). Ao longo do ano, foram realizadas oficinas para os moradores das comunidades sobre técnicas de uso de GPS para georreferenciamento e mapeamento.

O resultado são três mapas lindamente desenhados a mão e em escala correta, onde estão representadas todas as casas, roças, rios, lagoas, matas e caminhos das comunidades. Também estão lá as indicações de interferências indesejáveis como “rio poluído”, “nascente seca”, “poço seco”, “fedor”, “poeira” e “barulho”.

A revista (na verdade, o boletim de número 11 do projeto Cartografia da Cartografia Social) foi lançada ontem em Belo Horizonte, no espaço cultural Asa de Papel, com uma roda de conversa com três moradores das três comunidades.

Darcília Pires de Sena é quem mora mais perto da barragem, a cerca de um quilômetro. Ela reclama que não foi indenizada pela área em que plantava e que hoje está sob a barragem. Ela mantinha roça nessa área há 17 anos, mas não tinha documento de posse. Foi indenizada apenas pelo que havia lá de plantado.

“A Anglo American me ofereceu assistência (técnica agrícola) da Emater. Daí eu perguntei: assistência pra plantar horta no meu quintal? Quero não! Quero primeiro minha terra. Parece piada”, disse.

José Maria Silva, de São José do Jassém, e José Lúcio Reis, de Água quente, dizem que a reivindicação é de reassentamento negociado coletivamente, e que não aceitam a oferta de negociação individual como a aberta pela Anglo American nas comunidades vizinhas de São Sebastião do Bom Sucesso (Sapo), Cabeceira do Turco e Beco. O motivo desta abertura de negociação de compra de terras, segundo os moradores, está ligado a interesses de operação da Anglo American, e não aos dos moradores.

“Nossa luta, em primeiro lugar, é para que a Anglo American reassente a gente. E, em segundo, para que seja todo mundo junto”, diz José Maria, que teme propostas desagregadoras vindas da empresa. “Viver com medo é que a gente não quer mais”, disse.


Texto originalmente publicado no site do jornal O Beltrano:
https://www.obeltrano.com.br/portfolio/viver-com-medo/

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